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Carlos Eduardo Xavier

terça-feira, 17 de março de 2009

FICHA (Tudo que é sólido)...

BERMAN, Marshall, 1940 – Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade / Marshall Berman; [tradução: Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioriatti]. – São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

Disponível em: http://groups.google.com.br/group/digitalsource

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Introdução
Modernidade (Ontem, Hoje e Amanhã)

(Pág. 21)
Notável e peculiar na voz que Marx e Nietzsche compartilham não é só o seu ritmo afogueado, sua vibrante energia, sua riqueza imaginativa, mas também sua rápida e brusca mudança de tom e inflexão, sua prontidão em voltar-se contra si mesma, questionar e negar tudo o que foi dito, transformar a si mesma em um largo espectro de vozes harmônicas ou dissonantes e distender-se para além de sua capacidade na direção de um espectro sempre cada vez mais amplo, na tentativa de expressar e agarrar um mundo onde tudo está impregnado de seu contrário, um mundo onde “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Essa voz ressoa ao mesmo tempo como autodescoberta e autotripúdio, como auto-satisfação e auto-incerteza. É uma voz que conhece a dor e o terror, mas acredita na sua capacidade de ser bem-sucedida. Graves perigos estão em toda parte e podem eclodir a qualquer momento, porém nem o ferimento mais profundo pode deter o fluxo e refluxo de sua energia.

(24)
Ao que tudo indica, algumas das mais importantes variedades de sentimentos humanos vão ganhando novas cores à medida que as máquinas vão sendo criadas.

I - O FAUSTO DE GOETHE:
A TRAGÉDIA DO DESENVOLVIMENTO

A moderna sociedade burguesa, uma sociedade que desenvolveu gigantescos meios de troca e produção, é como o feiticeiro incapaz de controlar os poderes ocultos que desencadeou com suas fórmulas mágicas.
Manifesto do Partido Comunista

(40)
O Fausto de Goethe expressa e dramatiza o processo pelo qual, no fim do século XVIII e início do seguinte, um sistema mundial especificamente moderno vem à luz. A força vital que anima o Fausto goethiano, que o distingue dos antecessores e gera muito de sua riqueza e dinamismo é um impulso que vou designar com desejo de desenvolvimento. Fausto tenta explicar esse desejo ao diabo, porém não é fácil fazê-lo. Nas suas primitivas encarnações; Fausto vendia sua alma em troca de determinados bens, claramente definidos e universalmente desejados: dinheiro, sexo, poder sobre os outros, fama e glória

(41)
A heroicidade do Fausto goethiano provém da liberação de tremendas energias humanas reprimidas, não só nele mesmo, mas em todos os que ele toca e, eventualmente, em toda a sociedade a sua volta. Porém, o grande desenvolvimento que ele inicia — intelectual, moral, econômico, social — representa um altíssimo custo para o ser humano. Este é o sentido da relação de Fausto com o diabo: os poderes humanos só podem se desenvolver através daquilo que Marx chama de “os poderes ocultos”, negras e aterradoras energias, que podem irromper com força tremenda, para além do controle humano. O Fausto de Goethe é a primeira e ainda a melhor tragédia do desenvolvimento.

PRIMEIRA METAMORFOSE: O SONHADOR

Surpreendemos Fausto cercado de belos e raros livros e manuscritos, pinturas e diagramas, instrumentos científicos — toda a parafernália de uma vida espiritual bem-sucedida. No entanto, tudo quanto ele conseguiu soa vazio, tudo em volta dele parece um monte de sucata. Ele fala a si mesmo, sem cessar, e diz que nem sequer chegou a viver.

(42)
Sua cultura se desenvolveu no sentido de divorciá-lo da totalidade da vida.

(43)
Fausto participa de (e ajuda a criar) uma cultura que abriu uma amplitude e profundidade de desejos e sonhos humanos que se situam muito além das fronteiras clássicas e medievais.

Como portador de uma cultura dinâmica em uma sociedade estagnada, ele está dividido entre vida interior e vida exterior.

(44)
Enquanto Fausto permanece sentado noite adentro, a caverna de sua interioridade cresce em escuridão e abismo, até que ele resolve matar-se, trancando-se de uma vez por todas na tumba em que se transformou seu espaço interior. Apanha um frasco de veneno. Contudo, no ponto extremo de sua mais sombria autonegação, Goethe o resgata e o inunda de luz e afirmação. O quarto inteiro treme, ouve-se um extraordinário bimbalhar de sinos lá fora, o sol se ergue e um impressionante coro angelical ressoa: porque é Domingo de Páscoa. “Cristo se ergueu, do útero da decadência!”, eles dizem. “Irrompam de suas prisões, rejubilem-se com o dia!”. Os anjos cantam com elevação, o frasco despenca dos lábios do condenado e ele está salvo. Esse milagre sempre incomodou muitos leitores, como um truque simplista, um arbitrário deus ex machina; mas é mais complexo do que parece.

Esse instante do renascimento de Fausto, composto em 1799 ou 1800 e publicado em
1808, é um dos pontos altos do Romantismo europeu.

(45)
[...] redescoberta dos sentimentos da infância — podem liberar tremendas energias humanas, capazes de gerar amplas doses de poder e iniciativa a serem desviados para o projeto de reconstrução social.

(46)
Essa é a chave do seu famoso lamento: “Duas almas, oh, coexistem em meu peito”. Ele não pode continuar vivendo como uma mente desencarnada, audaz e brilhante, solta no vácuo; mas também não pode abdicar da mente e voltar a viver nesse mundo que havia abandonado. Ele precisa participar da vida social de uma maneira que faculte ao seu espírito aventuroso uma contínua expansão e crescimento. Porém, serão necessários “os poderes ocultos” para unir essas polaridades, para fazer tal síntese funcionar.

[...] Evangelho segundo São João: “No princípio era o Verbo”. Considerando esse princípio cosmicamente inadequado, procura uma alternativa e finalmente escolhe e escreve um novo princípio: “No princípio era a Ação”.

(47)
Os paradoxos vão ainda mais fundo: Fausto não será capaz de criar nada a não ser que se prepare para deixar que tudo siga o seu próprio rumo, para aceitar o fato de que tudo quanto foi criado até agora — e, certamente, tudo quanto ele venha a criar no futuro — deve ser destruído, a fim de consolidar o caminho para mais criação. Essa é a dialética que o homem moderno deve apreender para viver e seguir caminhando; e é a dialética que em pouco tempo envolverá e impelirá a moderna economia, o Estado e a sociedade como um todo.

(49)
Os “seis cavalos” mencionados nos versos sugerem que o bem mais valioso, segundo a perspectiva de Mefisto, é a velocidade. Em primeiro lugar, a velocidade tem sua utilidade: quem quer que pretenda realizar grandes empreendimentos no mundo precisará mover-se para todos os lados, com rapidez. Além disso, porém, a velocidade gera uma aura nitidamente sexual: quanto mais rápido ele puder “correr com eles”, mais “verdadeiro homem” — mais masculino, mais sexual — Fausto será.

SEGUNDA METAMORFOSE: O AMADOR

(53)
Agora, enquanto se olha no espelho — talvez pela primeira vez na vida — uma revolução acontece em seu íntimo. De súbito ela se torna reflexiva; capta a possibilidade de se tornar diferente, de mudar — a possibilidade de se desenvolver. Se alguma vez ela se sentiu à vontade nesse mundo, nunca mais voltará a adaptar-se a ele.

(57)
Mas a tragédia tem outra dimensão. Mesmo que, de algum modo, Fausto pretendesse e estivesse apto a adaptar-se ao mundo de Gretchen, ela própria não o desejaria e não o conseguiria.

(59)
Além disso, para sermos justos com Fausto, devemos reconhecer que Gretchen deseja com intensidade ser condenada. Existe alguma coisa aterradoramente voluntária na maneira como ela morre: ela permite que tudo se volte contra si mesma. Sua autoaniquilação talvez corresponda a loucura, mas ao mesmo tempo há algo aí de
estranhamente heróico.

TERCEIRA METAMORFOSE: O FOMENTADOR

Na segunda, ele entreteceu sua vida na de outra pessoa e aprendeu a amar. Agora, em sua última encarnação, ele conecta seus rumos pessoais com as forças econômicas, políticas e sociais que dirigem o mundo; aprende a construir e a destruir. Expande o horizonte de seu ser, da vida privada para a pública, da intimidade para o ativismo, da comunhão para a organização.

E prossegue: é um absurdo que, despendendo toda essa energia, o mar apenas se mova, para a frente e para trás, interminavelmente — “sem nada realizar!”. Isso talvez soe natural para Mefisto e, sem dúvida, para muitos dos leitores de Goethe, mas não para o próprio Fausto:

Isso me leva à beira da angústia desesperada!
Tanta energia propositalmente desatrelada!
Isso desafia meu espírito para além de tudo o que já vi;
Aqui, sim, eu lutaria, para a tudo isso subjugar (10 218-21)

(61)
Agora, porém, suas visões assumem uma forma radicalmente nova: nada de sonhos e fantasias, nem sequer de teorias, mas programas concretos, planos operacionais para transformar a terra e o oceano.

Tempos atrás, Mefisto mencionara a visão de um cavaleiro veloz como paradigma do homem que se move pelos caminhos do mundo. Agora, contudo, seu protegido o ultrapassou: Fausto pretende mover o próprio mundo.

(62)
A barganha política de Fausto mostra a visão goethiana de “um outro caminho” para o progresso: “O irrestrito e grandioso desenvolvimento de forças produtivas tornará supérfluas as revoluções políticas”. Assim Fausto e Mefisto ajudam o Imperador a prevalecer, Fausto ganha a sua concessão e, com grande estardalhaço, começa o trabalho do desenvolvimento.

(65)
À medida que Fausto supervisiona seu trabalho, toda a região em seu redor se renova e toda uma nova sociedade é criada à sua imagem. Apenas uma pequena porção de terra da costa permanece como era antes. Esta é ocupada por Filemo e Báucia, um velho e simpático casal que aí está há tempo sem conta. Eles têm um pequeno chalé sobre as dunas, uma capela com um pequeno sino, um jardim repleto de tílias e oferecem ajuda e hospitalidade a marinheiros náufragos e sonhadores. Com o passar dos anos, tornaram-se bem-amados como a única fonte de vida e alegria nessa terra desolada. Goethe toma de empréstimo seus nomes e situação das Metamorfoses de Ovídio, em que eles são os únicos a dar hospitalidade a Júpiter e Mercúrio, disfarçados, e em recompensa somente eles são salvos quando os deuses inundam e destroem a terra inteira. Goethe lhes confere mais individualidade do que eles têm em Ovídio, e atribui-lhes virtudes nitidamente cristãs: generosidade inocente, humildade, resignação. E investe neles, também, um pathos nitidamente moderno. Eles representam a primeira encarnação literária de uma categoria de pessoas de larga repercussão na história moderna: pessoas que estão no caminho — no caminho da história, do progresso, do desenvolvimento; pessoas que são classificadas, e descartadas, como obsoletas.

(66)
“Resistência e teimosia assim / Frustram o êxito mais glorioso, / Até um ponto em que, lamentavelmente, o homem começa a se cansar de ser justo.” (11 269-72). Nessa altura, Fausto comete de maneira consciente seu primeiro ato mau. Convoca intenção de Mefisto, invocando o pecado do rei Acab, em Reis 1:21, é mostrar que não há nada de novo na estratégia de apropriação empregada por Fausto: o narcisístico desejo de poder, mais desenfreado nos mais poderosos, é uma história antiga como o mundo.

(67)
O casal de velhos, como Gretchen, personificam o que de melhor o velho mundo pode oferecer. São demasiado velhos, demasiado teimosos, talvez demasiado estúpidos para se adaptar e mudar; no entanto, são pessoas belíssimas, o sal da terra em que vivem. É sua beleza e nobreza que deixam Fausto tão incomodado.

(68)
A destruição de Filemo e Báucia, por Fausto, vem a ser o clímax irônico da vida deste último. Ao matar o casal de velhos, ele pronuncia sua própria sentença de morte. Tendo eliminado todos os vestígios deles e do seu velho mundo, não lhe resta mais nada a fazer.

EPÍLOGO: UMA ERA FÁUSTICA E PSEUDO FÁUSTICA

(73)
Nos assim chamados países subdesenvolvidos, planos sistemáticos para um rápido desenvolvimento significam em geral a sistemática repressão das massas. Isso tem assumido, quase sempre, duas formas, distintas embora não raro mescladas. A primeira forma significou espremer até a última gota a força de trabalho das massas — “os sacrifícios humanos sangram, / Gritos de desespero cortarão a noite ao meio”, como se diz no Fausto — para alimentar as forças de produção e ao mesmo tempo reduzir de maneira drástica o consumo de massa, para gerar o excedente necessário aos reinvestimentos econômicos. A segunda forma envolve atos aparentemente gratuitos de destruição — a eliminação de Filemo e Báucia, seus sinos e suas árvores, por Fausto — destinados não a gerar qualquer utilidade material, mas a assinalar o significado simbólico de que a nova sociedade deve destruir todas as pontes, a fim de que não haja uma volta atrás.

(75)
De tempos em tempos, um povo tenta destronar seus pseudofomentadores — como aquele pseudofáustico em escala mundial, o xá do Irã. Então, por um breve momento —
nunca por mais de um breve momento — as pessoas talvez possam tomar o desenvolvimento em suas próprias mãos. Se Brown vê o Fausto de início como símbolo de ação histórica e angústia: “o homem fáustico é o homem que faz a história”. Mas, se a repressão sexual e psíquica pudesse de algum modo ser rompida — esta a esperança de Brown —, “o homem estaria pronto para viver em vez de fazer história”.

(79)
A iminente consumação da história seria “um período de êxtase geral”; arte, pensamento e ciência podem continuar existindo, mas com pouca função além de servir para passar o tempo e desfrutar a vida.

(80)
Ao longo dos anos 70, à medida que se intensificou o debate em torno da conveniência e dos limites do crescimento econômico e das melhores formas de produzir e conservar energia, ecologistas e defensores do anticrescimento pintaram Fausto como o típico “Homem-Pro-gresso”, que faria o mundo em pedaços, em nome da expansão insaciável, sem perguntar ou sem se preocupar com o que o crescimento ilimitado faria à natureza ou ao homem. Desnecessário dizer que isso é uma absurda distorção da história de Fausto, reduzindo a tragédia a melodrama.

(82)
Nos anos recentes, os debates em torno do poder nuclear geraram novas metamorfoses de Fausto. Em 1971, Alvin Weinberg, um brilhante físico e administrador e por muitos anos diretor do Laboratório de Oak Ridge, invocou Fausto no clímax de um discutidíssimo depoimento sobre “Instituições Sociais e Energia Nuclear”:

Nós, envolvidos em ciência nuclear, estabelecemos uma transação
fáustica com a sociedade. De um lado, oferecemos — no combustível
nuclear catalítico — uma inexaurível fonte de energia. (...) Mas o
preço que exigimos da sociedade por essa mágica fonte de energia é
uma vigilância e uma longevidade das instituições sociais a que não
estamos nem um pouco habituados.

(83)
Homens e mulheres modernos, em busca de autoconhecimento, podem perfeitamente encontrar um ponto de partida em Goethe, que nos deu com o Fausto nossa primeira tragédia do desenvolvimento. É uma tragédia que ninguém deseja enfrentar — sejam países avançados ou atrasados, de ideologia capitalista ou socialista —, mas que todos continuam a protagonizar. As perspectivas e visões de Goethe nos ajudam a ver como a mais completa e profunda crítica à modernidade pode partir exatamente daqueles que de modo mais entusiasmado adotam o espírito de aventura na modernidade. Todavia, se
Fausto é uma crítica, é também um desafio — ao nosso mundo, ainda mais do que ao mundo de Goethe — no sentido de imaginarmos e criarmos novas formas de modernidade, em que o homem não existirá em função do desenvolvimento mas este, sim, em função do homem. O interminável canteiro de obras de Fausto é o chão vibrante porém inseguro sobre o qual devemos balizar e construir nossas vidas.

II - TUDO O QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR:
MARX, MODERNISMO E MODERNIZAÇÃO

Ao nascimento da mecanização e da indústria moderna (...) seguiu-se um violento abalo, como uma avalanche, em intensidade e extensão. Todos os limites da moral e da natureza, de idade e sexo, de dia e noite, foram rompidos. O capital celebrou suas orgias.
O Capital, volume I

Eu sou o espírito que nega tudo.
Mefistófeles, no Fausto

Autodestruição inovadora!
Anúncio da Mobil Oil, 1978

... aquela aparente desordem que é, na verdade, o mais alto grau de ordem burguesa.
Dostoievski em Londres, 1862

(86)
Puchkin faz do Fausto: “uma Ilíada da vida moderna”. Isso pressupõe uma unidade de vida e experiência, que envolve a política e a psicologia, a indústria e a espiritualidade, as classes dominantes e as classes operárias, na modernidade. Este capítulo é uma tentativa de captar e reconstruir a visão da vida moderna como um todo, segundo Marx.

(87)
As afinidades entre Marx e os modernistas tornam-se ainda mais claras quando observamos a passagem inteira de onde a imagem foi extraída: “Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens”.

1. A VISÃO DILUIDORA E SUA DIALÉTICA

O ponto básico que fez a fama do Manifesto é o desenvolvimento da moderna burguesia e do proletariado e a luta entre ambos.

(89) A escala de comunicações se torna mundial, o que faz emergir uma mass media tecnologicamente sofisticada. O capital se concentra cada vez mais nas mãos de poucos. Camponeses e artesãos independentes não podem competir com a produção de massa capitalista e são forçados a abandonar suas terras e fechar seus estabelecimentos. A produção se centraliza de maneira progressiva e se racionaliza em fábricas altamente automatizadas. (No campo acontece o mesmo: fazendas se transformam em “fábricas agrícolas” e os camponeses que não abandonam o campo se transformam em proletários campesinos.) Um vasto número de migrantes pobres são despejados nas cidades, que crescem como num passe de mágica — catastroficamente — do dia para a noite. Para que essas grandes mudanças ocorram com relativa uniformidade, alguma centralização legal, fiscal e administrativa precisa acontecer; e acontece onde quer que chegue o capitalismo. Estados nacionais despontam e acumulam grande poder, embora esse poder seja solapado de forma contínua pelos interesses internacionais do capital. Enquanto isso, trabalhadores da indústria despertam aos poucos para uma espécie de consciência de classe e começam a agir contra a aguda miséria e a opressão crônica em que vivem. Enquanto lemos isso, sentimo-nos pisando terreno familiar; tais processos continuam a ocorrer à nossa volta, e um século de marxismo ajudou-nos a fixar uma linguagem segundo a qual isso faz sentido.

Continuando a 1er, porém, se o fizermos com plena atenção, algo estranho começará a acontecer. A prosa de Marx subitamente se torna luminosa, incandescente; imagens brilhantes se sucedem e se desdobram em outras; somos arrastados num ímpeto fogoso,
numa intensidade ofegante. Marx não está apenas descrevendo, mas evocando e dramatizando o andamento desesperado e o ritmo frenético que o capitalismo impõe a todas as facetas da vida moderna. Com isso, nos leva a sentir que participamos da ação, lançados na corrente, arrastados, fora de controle, ao mesmo tempo confundidos e ameaçados pela impetuosa precipitação. Após algumas páginas disso, sentimo-nos excitados mas perplexos; sentimos que as sólidas formações sociais à nossa volta se diluíram.

(90)
O que é surpreendente nas páginas seguintes é que Marx parece empenhado não em enterrar a burguesia, mas em exaltá-la. Ele compõe uma apaixonada, entusiasmada e quase lírica celebração dos trabalhos, idéias e realizações da burguesia. Com efeito, nessas páginas ele exalta a burguesia com um vigor e uma profundidade que os próprios burgueses não seriam capazes de expressar.

O que fizeram os burgueses para merecer a exaltação de Marx? Antes de tudo, eles foram “os primeiros a mostrar do que a atividade humana é capaz”. Marx não quer dizer que eles tenham sido os primeiros a celebrar a idéia da vita activa, uma postura ativista diante do mundo. Isso tem sido um tema central na cultura do Ocidente desde a Renascença; adquiriu novas profundidades e ressonâncias no próprio século de Marx, na era do Romantismo e da Revolução, de Napoleão, Byron e o Fausto de Goethe. O próprio Marx desenvolverá o tema em novas direções, e este continuará evoluindo até o tempo presente. No Manifesto, a idéia de Marx é que a burguesia efetivamente realizou aquilo que poetas, artistas e intelectuais modernos apenas sonharam, em termos de modernidade. Por isso, a burguesia “realizou maravilhas que ultrapassam em muito as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas”; “organizou expedições que fazem esquecer todas as migrações e as cruzadas anteriores”.

A burguesia, em seu reinado de apenas um século, gerou um poder de
produção mais massivo e colossal do que todas as gerações anteriores
reunidas. Submissão das forças da natureza ao homem, maquinado,
aplicação da química à agricultura e à indústria, navegação a vapor,
ferrovias, telegrafia elétrica, esvaziamento de continentes inteiros para o
cultivo, canalização de rios, populações inteiras expulsas de seu habitat
— que século, antes, pôde sequer sonhar que esse poder produtivo
dormia no seio do trabalho social? (p. 473-75)

(94)
A solução irônica e feliz dessa contradição ocorrerá, diz Marx, quando “o desenvolvimento da moderna indústria se separar do próprio solo, logo abaixo dos seus pés, em que a burguesia produz e se apropria de produtos”.

em lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e seu
antagonismo de classes, teremos uma associação em que o livre
desenvolvimento de cada um será a condição para o livre
desenvolvimento de todos. (p. 353)

Então a experiência do autodesenvolvimento, livre das pressões e distorções do mercado, poderá prosseguir livre e espontaneamente; em vez do pesadelo em que foi transformado pela sociedade burguesa, poderá tornar-se fonte de alegria e beleza para todos.

(95)
Ele espera, portanto, cicatrizar as feridas da modernidade através de uma modernidade ainda mais plena e profunda.

2. AUTODESTRUIÇÃO INOVADORA

(96)
“Tudo o que é sólido” — das roupas sobre nossos corpos aos teares e fábricas que as tecem, aos homens e mulheres que operam as máquinas, às casas e aos bairros onde vivem os trabalhadores, às firmas e corporações que os exploram, às vilas e cidades, regiões inteiras e até mesmo as nações que as envolvem — tudo isso é feito para ser desfeito amanhã, despedaçado ou esfarrapado, pulverizado ou dissolvido, a fim de que possa ser reciclado ou substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante, sempre adiante, talvez para sempre, sob formas cada vez mais lucrativas.

(97)
Todos os anárquicos, desmedidos e explosivos impulsos que a geração seguinte batizará com o nome niilismo — impulsos que Nietzsche e seus seguidores irão imputar a traumas cósmicos como a Morte de Deus — Marx localiza na atividade cotidiana, aparentemente banal, da economia de mercado.

Marx desmascara os burgueses modernos como consumados niilistas, em escala muito mais vasta do que os modernos intelectuais podem conceber. Mas esses burgueses alienaram-se de sua própria criatividade, pois não suportam olhar de frente o abismo moral, social e psíquico gerado por essa mesma criatividade.

3. NUDEZ: O HOMEM DESACOMODADO

(102)
Agora que vimos em ação a visão “diluidora” de Marx, gostaria de me servir dela para explicar algumas das imagens mais poderosas da vida moderna, constantes do Manifesto. Na passagem abaixo, Marx tenta mostrar como o capitalismo transformou as relações das pessoas entre si e consigo mesmas.

A burguesia rompeu com todos os laços feudais que subordinavam os homens aos seus “superiores naturais”, e não deixou entre homem e homem nenhum outro laço senão seus interesses nus, senão o empedernido salário. Transformou o êxtase paradisíaco do fanatismo piedoso, do entusiasmo cavaleiresco e do sentimentalismo filisteu na água
congelada do cálculo egoísta. (...) A burguesia despiu o halo de todas as ocupações até então honoráveis, encaradas com reverente respeito. (...) A burguesia estirpou da família seu véu sentimental e transformou a relação familiar em simples relação monetária. (...) Em lugar da exploração mascarada sob ilusões religiosas e políticas, ela colocou uma exploração aberta, desavergonhada, direta e nua. (p. 475-76)

(106)
As revoluções burguesas, arrancando fora os véus “da ilusão religiosa e política”, haviam deixado a exploração e o poder desnudos, a crueldade e a miséria expostos como feridas abertas, mas ao mesmo tempo tinham descoberto e exposto novas opções e esperanças.

(107)
Mas, se a sociedade burguesa é volátil, como Marx pensa que é, como poderão as pessoas se fixar em qualquer espécie de individualidade “real”? Em meio a todas as possibilidades e necessidades que bombardeiam o indivíduo e todos os desencontrados movimentos que o impelem, como poderá alguém definir de forma cabal quem é essencial e quem é acidental? A natureza do novo homem moderno, desnudo, talvez se mostre tão vaga e misteriosa quanto a do velho homem, o homem vestido, talvez ainda mais vaga, pois não haverá mais ilusões quanto a uma verdadeira identidade sob as máscaras. Assim, juntamente com a comunidade e a sociedade, a própria individualidade pode estar desmanchando no ar moderno.

4. A METAMORFOSE DOS VALORES

5. A PERDA DO HALO


(111)
Marx acredita que o capitalismo tende a destruir essa modalidade de experiência, em todos: “tudo o que é sagrado é profanado”; ninguém é intocável, a vida se torna inteiramente dessantificada. De vários modos, Marx sabe que isso é assustador: homens
e mulheres modernos podem muito bem ser levados ao nada, carentes de qualquer sentimento de respeito que os detenha; livres de medos e temores, estão livres para atropelar qualquer um em seu caminho, se os interesses imediatos assim o determinarem. Contudo, Marx também divisa as virtudes de uma vida despida de halos: esta desperta a condição da igualdade espiritual.

É necessário lembrar que Marx escreve num momento histórico em que, sobretudo na Inglaterra e na França (o Manifesto, na verdade, tem mais a ver com esses países que com a Alemanha do tempo de Marx), a decepção com o capitalismo é generalizada e intensa e está praticamente pronta a deflagrar formas revolucionárias. Nos vinte anos seguintes, aproximadamente, a burguesia se mostrará notavelmente inventiva ao criar os seus próprios halos.

(114)
Todos foram agudos e mordazes em sua crítica ao capitalismo, mas, ao mesmo tempo, absurdamente complacentes em relação à crença de que seriam capazes de transcendê-lo, de que poderiam viver e trabalhar livremente, para além de suas normas e exigências.

(115)
Antonio Gramsci, um dos maiores pensadores e líderes comunistas do nosso século, descreveu como “pessimismo do intelecto, otimismo da vontade”.

CONCLUSÃO: A CULTURA E AS CONTRADIÇÕES DO CAPITALISMO

(117)
A força do marxismo sempre se apoiou no enfrenta-mento das ameaçadoras realidades sociais, sempre se empenhou em manipulá-las e superá-las; abandonar essas fontes primordiais de energia reduz o marxismo a pouco mais que um nome.

(119)
Em lugar das velhas carências, satisfeitas pela produção interna, enfrentamos agora novas carências que exigem, para sua satisfação, produtos de terras e climas distantes. Em lugar da velha auto-suficiência local e nacional, deparamos, em todas as direções, com a interdependência universal. Tanto na produção material como na espiritual (geistige). As criações espirituais de nações individualizadas se tornam propriedade comum. O bitolamento e a unilateralidade das nações se tornam cada vez mais impossíveis, e das várias literaturas nacionais e locais brota uma literatura mundial, (p. 476-77)

O cenário descrito por Marx serve perfeitamente de programa para o modernismo internacional que floresceu de seu tempo até o nosso: uma cultura que é antibitolada e multilateral, que expressa o escopo universal dos desejos modernos e que, a despeito da mediação da economia burguesa, é “propriedade comum” de toda a humanidade. Mas e se essa cultura não for exatamente universal, como Marx pensou que seria? E se ela afinal se revelar um empreendimento exclusiva e provincianamente ocidental? Essa possibilidade foi proposta pela primeira vez, na metade do século XIX, pelos populistas russos. Seu argumento era que a explosiva atmosfera de modernização no Ocidente — a falência das comunidades e o isolamento psíquico do indivíduo, o empobrecimento das massas e a polarização de classes, uma criatividade cultural desencadeada pelo desespero moral e a anarquia espiritual — talvez fosse mais uma peculiaridade cultural que uma necessidade imperiosa destinada de maneira inexorável à humanidade como um todo. Por que outras nações e civilizações não poderiam buscar sínteses mais harmoniosas entre os meios de vida tradicionais e as potencialidades e necessidades modernas? Numa palavra — esta crença foi expressa às vezes como dogma, às vezes como esperança desesperada —, seria apenas no Ocidente que “tudo o que é sólido desmancha no ar”.

(123)
Venho tentante demonstrar que as mais severas críticas à vida moderna têm a imperiosa necessidade de recorrer ao modernismo, para nos mostrar em que ponto estamos e a partir de que ponto podemos começar a mudar nossas circunstâncias e a nós mesmos. Em busca de um ponto de partida, retornei a um dos primeiros e grandes modernistas, Karl Marx.

Voltei a ele não tanto por suas respostas, mas por suas perguntas. O que de mais valioso ele nos tem a oferecer, hoje, não é um caminho que permita sair das contradições da vida moderna, e sim um caminho mais seguro e mais profundo que nos coloque exatamente no cerne dessas contradições. Ele sabia que o caminho para além das contradições teria de ser procurado através da modernidade, não fora dela. Ele sabia que precisamos começar do ponto onde estamos: psiquicamente nus, despidos de qualquer halo religioso, estético ou moral, e de véus sentimentais, devolvidos à nossa vontade e energia individuais, forçados a explorar aos demais e a nós mesmos para sobreviver; e mesmo assim, a despeito de tudo, reunidos pelas mesmas forças que nos separam, vagamente cônscios de tudo o que poderemos realizar juntos, prontos a nos distendermos na direção de novas possibilidades humanas, a desenvolver identidades e fronteiras comuns que podem ajudar-nos a manter-nos juntos, enquanto o selvagem ar moderno explode em calor e frio através de todos nós.


III - BAUDELAIRE:
O MODERNISMO NAS RUAS

(128)
Nossa visão da vida moderna tende a se bifurcar em dois níveis, o material e o espiritual: algumas pessoas se dedicam ao “modernismo”, encarado como uma espécie de puro espírito, que se desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais autônomos; outras se situam na órbita da “modernização”, um complexo de estruturas e processos materiais — políticos, econômicos, sociais — que, em princípio, uma vez encetados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana. Esse dualismo, generalizado na cultura contemporânea, dificulta nossa apreensão de um dos fatos mais marcantes da vida moderna: a fusão de suas forças materiais e espirituais, a interdependência entre o indivíduo e o ambiente moderno.

Este capítulo é montado em torno de Baudelaire, que fez mais do que ninguém, no século XIX, para dotar seus contemporâneos de uma consciência de si mesmos enquanto modernos.

(129)
O poeta Theodore de Banville desenvolveu esse tema dois anos mais tarde, em um tocante tributo diante do túmulo de Baudelaire:

Ele aceitou o homem moderno em sua plenitude, com suas fraquezas,
suas aspirações e seu desespero. Foi, assim, capaz de conferir beleza a
visões que não possuíam beleza em si, não por fazê-las romanticamente
pitorescas, mas por trazer à luz a porção de alma humana ali escondida;
ele pôde revelar, assim, o coração triste e muitas vezes trágico da cidade
moderna. É por isso que assombrou, e continuará a assombrar, a mente
do homem moderno, comovendo-o, enquanto outros artistas o deixam
frio.

A reputação de Baudelaire, ao longo dos cem anos após sua morte, desenvolveu-se segundo as linhas sugeridas por Banville: quanto mais seriamente a cultura ocidental se preocupa com o advento da modernidade, tanto mais apreciamos a originalidade e a coragem de Baudelaire, como profeta e pioneiro. Se tivéssemos de apontar um primeiro modernista, Baudelaire seria sem dúvida o escolhido.

Contudo, uma das qualidades mais evidentes dos muitos escritos de Baudelaire sobre vida e arte moderna consiste em assinalar que o sentido da modernidade é surpreendentemente vago, difícil de determinar.

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O primeiro imperativo categórico do modernismo de Baudelaire é orientar-nos na direção das forças primárias da vida moderna; mas Baudelaire não deixa claro em que consistem essas forças, nem o que viria a ser nossa postura diante delas. Contudo, se percorrermos sua obra, veremos que ela contém várias visões distintas da modernidade. Essas visões muitas vezes parecem opor-se violentamente umas às outras, e Baudelaire nem sempre parece estar ciente das tensões entre elas. Mais do que isso, ele sempre as apresenta com verve e brilho e quase sempre as elabora com grande originalidade e profundidade. Mais ainda: todas as modernas visões de Baudelaire e todas as suas contraditórias atitudes críticas em relação à modernidade adquiriram vida própria e perduraram por longo tempo após sua morte, até o nosso próprio tempo.

MODERNISMO PASTORAL E ANTIPASTORAL

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O motivo burguês fundamental, aqui, é o desejo de progresso humano infinito não só na economia, mas universalmente nas esferas da política e da cultura. Baudelaire assinala o que ele sente como a criatividade inata e a universalidade de visão dos burgueses: uma vez que eles são impelidos pelo desejo de progresso na indústria e na política, estaria aquém de sua dignidade parar e aceitar a estagnação em arte.

[...] os monopólios de cartel são um obstáculo à vida e energia econômica, “os aristocratas do pensamento, os monopolistas das coisas do espírito” sufocarão a vida espiritual e privarão a burguesia das ricas fontes da arte e do pensamento modernos. A fé que Baudelaire deposita na burguesia põe de lado as sombrias potencialidades de seus movimentos políticos e econômicos — eis porque eu a chamo de visão pastoral. Contudo, sustenta que os grupos mais dinâmicos e inovadores na vida econômica e política serão os mais abertos à criatividade intelectual e artística — “para concretizar a idéia de futuro em todas as suas formas”; essa visão encara as mudanças econômicas e culturais como progresso humano sem obstáculos.

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Existe um importante corpus de escritos modernos, com freqüência produzidos por escritores sérios, que se assemelha demasiado a material de propaganda. Esses escritos vêem toda a aventura espiritual da modernidade encarnada na última moda, na última máquina, ou — e isso já é mais sinistro — no último modelo de regimento militar.

Paradas militares, de Baudelaire ao nosso tempo, desempenham um papel decisivo na visão pastoral da modernidade: equipagens reluzentes, colorido vistoso, formações fluentes, movimentos rápidos e graciosos, a modernidade sem lágrimas.

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Beleza, aqui, aparece como algo estático, imutável, inteiramente externo ao indivíduo, a exigir rígida obediência e a impor castigos sobre seus récalcitrantes súditos modernos, extinguindo todas as formas de Iluminismo, funcionando como uma espécie de polícia espiritual a serviço de uma Igreja e um Estado contra-revolucionários.

Baudelaire recorre a esse expediente reacionário porque está preocupado com a crescente “confusão entre ordem material e ordem espiritual”, disseminada pela epopéia do progresso. Assim, tome-se qualquer bom francês, que lê o seu jornal, no seu café, perguntese-lhe o que ele entende por progresso, e ele responderá que é o vapor, a eletricidade e a luz do gás, milagres desconhecidos dos romanos, testemunho incontestável de nossa superioridade sobre os antigos. Tal é o grau de escuridão que se instalou nesse cérebro infeliz!

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Baudelaire tem toda a razão em lutar contra a confusão entre progresso material e progresso espiritual — uma confusão que persiste em nosso século e se torna especialmente exuberante em períodos de boom econômico. Mas ele se mostra tão estúpido quanto aquele espantalho no café quando salta para o pólo oposto e define a arte de modo que esta pareça não ter qualquer conexão com o mundo material: O pobre homem tornou-se tão americanizado pelas filosofias zoocráticas e industriais que perdeu toda a noção da diferença entre os fenômenos do mundo físico e os do mundo moral, entre o natural e o sobrenatural.

Baudelaire vai além: ele não apenas desvincula seu artista do mundo material do vapor, da eletricidade e do gás, mas também de toda a história da arte, passada e futura. Com isso, diz ele, é errado até mesmo pensar em predecessores do artista, ou em virtuais influências que tenha sofrido. “Todo florescimento (em arte) é espontâneo, individual. (...) O artista nasce apenas de si mesmo. (...) A única segurança que ele estabelece é para si mesmo. Ele morre sem deixar filhos, tendo sido seu próprio rei, seu próprio sacerdote, seu próprio Deus.” Baudelaire mergulha em uma transcendência que deixa Kant muito para trás: esse artista se torna um Ding-an-sich (objeto-em-si) ambulante. Assim, na mercurial e paradoxal sensibilidade de Baudelaire, a imagem antipastoral do mundo moderno gera uma visão notavelmente pastoral do artista moderno, que, intocado, flutua, livre, acima disso tudo. O dualismo pela primeira vez esboçado aqui — visão antipastoral do mundo moderno, visão pastoral do artista moderno e sua arte — se amplia e aprofunda no seu famoso ensaio de 1859, “O Público Moderno e a Fotografia”. Baudelaire começa por se queixar de que “o gosto exclusivo do Verdadeiro (nobre aptidão, quando aplicada a seus fins próprios) oprime o gosto do Belo”. Esta é a retórica do equilíbrio, que resiste às ênfases exclusivas: a verdade é essencial, desde que não asfixie o desejo de beleza.

Todavia, o senso de equilíbrio não dura muito: “Onde não se devia ver nada além de Beleza (no sentido de uma bela pintura), o público procura apenas a Verdade”. Como a
fotografia é capaz de reproduzir a realidade com mais precisão do que nunca — para mostrar a “Verdade” —, esse novo meio é “o inimigo mortal da arte”, e, na medida em que o desenvolvimento da fotografia é produto do progresso tecnológico, “Poesia e progresso são como dois homens ambiciosos que se odeiam. Quando seus caminhos se cruzam, um deles deve dar passagem ao outro”.

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Ainda piores que os fotógrafos, diz Baudelaire, são os modernos pintores influenciados pela fotografia: cada vez mais, o pintor moderno “é dado a pintar não o que ele sonha, mas o que vê”. O que dá a isso um teor pastoral, e acrítico, é o dualismo radical, é a profunda inconsciência de que pode haver relações ricas e complexas, plenas de influências mútuas e fusões, entre o que um artista (ou quem quer que seja) sonha e vê.

A atitude polêmica de Baudelaire contra a fotografia exerceu extrema influência no sentido de definir uma forma peculiar de modernismo estético, que impregna nosso século — por exemplo, em Pound, Wyndham Lewis e seus vários seguidores —, em função do qual os homens modernos são incansavelmente desprezados, enquanto os artistas modernos e suas obras são exaltados com exagero, sem a menor suspeita de que esses artistas sejam mais humanos e estejam mais profundamente implicadas em la vie moderne do que poderiam pensar.

O HEROÍSMO DA VIDA MODERNA

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O pensamento não está desenvolvido de maneira adequada, contudo dois aspectos merecem ser salientados. Primeiro, a ironia baudelaireana a respeito das “gravatas”: muitos poderão pensar que a justaposição de heroísmo e gravatas é uma piada; e é, mas a piada consiste precisamente em mostrar que os homens modernos são heróicos, não obstante a ausência da parafernália heróica tradicional; com efeito, eles são ainda mais heróicos, sem a parafernália para inflar seus corpos e almas. Segundo, a tendência moderna de fazer sempre tudo novo: a vida moderna do ano que vem parecerá e será diferente da deste ano; todavia, ambas farão parte da mesma era moderna. O fato de que você não pode pisar duas vezes na mesma modernidade tornará a vida moderna especialmente indefinível, difícil de apreender.

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O ponto crucial do heroísmo moderno, como Baudelaire o vê aqui, é que ele emerge em conflito, em situações de conflito que permeiam a vida cotidiana no mundo moderno. Baudelaire dá exemplos da vida burguesa, bem como das altas esferas da moda e das formas mais baixas de vida: o político heróico, o ministro de governo vergastando, na Assembléia, os seus opositores com um discurso inflamado e contundente, clamando contra sua política e contra si mesmo; o Marx, Kierkegaard, Dostoievski, Nietzsche — para os quais o fato básico da vida moderna é o fato de que, como se lê no Manifesto Comunista, “tudo o que é sólido desmancha no ar”.

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O verdadeiro objetivo do artista moderno consistiria em rearticular tais processos, inoculando sua própria alma e sensibilidade através dessas transformações, para trazer à luz, em sua obra, essas forças explosivas. Mas como? Não creio que Baudelaire, ou qualquer outro no século XIX, tenha tido uma idéia clara de como fazer isso. Essas imagens só começarão a se concretizar no início do século XX — na pintura cubista, na colagem e na montagem, no cinema, no fluxo de consciência do romance moderno, no verso livre de Eliot, Pound e Apollinaire, no futurismo, no vorticismo, no construtivismo, no dadaísmo, nos poemas que aceleram como automóveis, nas pinturas que explodem como bombas.

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Um dos problemas fundamentais do modernismo do século XX é que nossa arte tende a perder contato com a vida cotidiana das pessoas. Isto, é claro, não é universalmente verdadeiro — o Ulisses de Joyce talvez seja a mais nobre exceção —, mas é verdadeiro o suficiente para ser notado por todos quantos se preocupam com a vida moderna e a arte moderna.

Para Baudelaire, porém, uma arte que não se disponha a épouser as vidas de homens e mulheres na multidão não merecerá ser chamada propriamente de arte moderna.

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Baudelaire nos mostra algo que nenhum escritor pôde ver com tanta clareza: como a modernização da cidade simultaneamente inspira e força a modernização da alma dos seus cidadãos.

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No prefácio a Spleen de Paris, Baudelaire proclama que la vie moderne exige uma nova linguagem: “uma prosa poética, musical mas sem ritmo e sem rima, suficientemente flexível e suficientemente rude para adaptar-se aos impulsos líricos da alma, às modulações do sonho, aos saltos e sobressaltos da consciência”. Sublinha que “esse ideal obsessivo nasceu, acima de tudo, da observação das cidades enormes e do cruzamento de suas inúmeras conexões”. O que Baudelaire procura comunicar através dessa linguagem, antes de mais nada, é aquilo que chamarei de cenas modernas primordiais: experiências que brotam da concreta vida cotidiana da Paris de Bonaparte e de Haussmann, mas estão impregnadas de uma ressonância e uma profundidade míticas que as impelem para além de seu tempo e lugar, transformando-as em arquétipos da vida moderna.

A FAMÍLIA DE OLHOS

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Eis por que, diz ele, hoje ele a odeia. E acrescenta que o incidente o deixou triste e enraivecido: agora vê “como é difícil para as pessoas se compreenderem umas às outras, como o pensamento é incomunicável” — assim termina o poema — “mesmo entre pessoas apaixonadas”.

O que torna esse encontro particularmente moderno? O que o distingue de uma vasta quantidade de outras cenas parisienses, que também falam de amor e luta de classes? A diferença está no espaço urbano onde acontece nossa cena: “No fim da tarde você quis sentar-se em frente ao novo café, na esquina do novo bulevar, ainda atulhado de detritos, mas já mostrando seus infinitos esplendores”. A diferença, em uma palavra, é o boulevard: o novo bulevar parisiense foi a mais espetacular inovação urbana do século XIX, decisivo ponto de partida para a modernização da cidade tradicional.

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Além disso, eles eliminariam as habitações miseráveis e abririam “espaços livres” em meio a camadas de escuridão e apertado congestionamento. Estimulariam uma tremenda expansão de negócios locais, em todos os níveis, e ajudariam a custear imensas demolições municipais, indenizações e novas construções. Pacificariam as massas, empregando dezenas de milhares de trabalhadores — o que às vezes chegou a um quarto da mão-de-obra disponível na cidade — em obras públicas de longo prazo, as quais por sua vez gerariam milhares de novos empregos no setor privado. Por fim, criariam longos e largos corredores através dos quais as tropas de artilharia poderiam mover-se eficazmente contra futuras barricadas e insurreições populares.

Os bulevares representam apenas uma parte do amplo sistema de planejamento urbano, que incluía mercados centrais, pontes, esgotos, fornecimento de água, a Ópera e outros monumentos culturais, uma grande rede de parques. “Diga-se, em tributo ao eterno crédito do barão Haussmann” — assim se expressou Robert Moses, seu mais ilustre e notório sucessor, em 1942 —, “que ele resolveu de uma vez por todas, de maneira firme e segura, o problema da modernização urbana em larga escala.” O empreendimento pôs abaixo centenas de edifícios, deslocou milhares e milhares de pessoas, destruiu bairros inteiros que aí tinham existido por séculos. Mas franqueou toda a cidade, pela primeira vez em sua história, à totalidade de seus habitantes. Agora, após séculos de vida claustral, em células isoladas, Paris se tornava um espaço físico e humano unificado.

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Os bulevares de Napoleão e Haussmann criaram novas bases — econômicas, sociais, estéticas — para reunir um enorme contingente de pessoas. No nível da rua, elas se enfileiravam em frente a pequenos negócios e lojas de todos os tipos e, em cada esquina, restaurantes com terraços e cafés nas calçadas. Esses cafés, como aquele onde os amantes baudelaireanos e a família em farrapos se defrontaram, passaram logo a ser vistos, em todo o mundo, como símbolos de la vie parisienne. As calçadas de Haussmann, como os próprios bulevares, eram extravagantemente amplas, juncadas de bancos e luxuriosamente arborizadas. Ilhas para pedestres foram instaladas para tornar mais fácil a travessia, separar o tráfico local do tráfico de longa distância e abrir vias alternativas para as caminhadas. Grandes e majestosas perspectivas foram desenhadas, com monumentos erigidos no extremo dos bulevares, de modo que cada passeio conduzisse a um clímax dramático. Todas essas características ajudaram a transformar Paris em um espetáculo particularmente sedutor, uma festa para os olhos e para os sentidos. Cinco gerações de pintores, escritores e fotógrafos modernos (e, um pouco mais tarde, de cineastas), começando com os impressionistas em 1860, nutrir-se-iam da vida e da energia que escoavam ao longo dos bulevares. Por volta de 1880, os padrões de Haussmann foram universalmente aclamados como o verdadeiro modelo do urbanismo moderno. Como tal, logo passou a ser reproduzido em cidades de crescimento emergente, em todas as partes do mundo, de Santiago a Saigon. O que os bulevares fizeram às pessoas que para aí acorreram, a fim de ocupá-los?

Baudelaire nos mostra alguns dos seus efeitos mais notáveis. Para os amantes, como aqueles de “Os Olhos dos Pobres”, os bulevares criaram uma nova cena primordial: um espaço privado, em público, onde eles podiam dedicar-se à própria intimidade, sem estar fisicamente sós.

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Esta cena primordial revela algumas das mais profundas ironias e contradições na vida da cidade moderna. O empreendimento que torna toda essa humanidade urbana uma grande “família de olhos”, em expansão, também põe à mostra as crianças enjeitadas dessa família. As transformações físicas e sociais que haviam tirado os pobres do alcance da visão, agora os trazem de volta diretamente à vista de cada um. Pondo abaixo as velhas e miseráveis habitações medievais, Haussmann, de maneira involuntária, rompeu a crosta do mundo até então hermeticamente selado da tradicional pobreza urbana. Os bulevares, abrindo formidáveis buracos nos bairros pobres, permitiram aos pobres caminhar através desses mesmos buracos, afastando-se de suas vizinhas arruinadas, para descobrir, pela primeira vez em suas vidas, como era o resto da cidade e como era a outra espécie de vida que aí existia. E, à medida que vêem, eles também são vistos: visão e epifania fluem nos dois sentidos. No meio dos grandes espaços, sob a luz ofuscante, não há como desviar os olhos. O brilho ilumina os detritos e ilumina as vidas sombrias das pessoas a expensas das quais as luzes brilhantes resplandecem.

(148)
A manifestação das divisões de classe na cidade moderna implica divisões interiores no indivíduo moderno.

A presença dos pobres lança uma sombra inexorável sobre a cidade iluminada.

Se assim é, isso nos mostra como as contradições que animam a cidade moderna ressoam na vida interior do homem na rua.

Baudelaire sabe que as reações do homem e da mulher, sentimentalismo liberal e rudeza reacionária, são igualmente fúteis. De um lado, não há como assimilar os pobres no conforto de qualquer família; de outro, não há nenhum tipo de repressão que possa livrar-se deles por muito tempo — eles sempre voltarão. Só a mais radical reconstrução da sociedade moderna poderia começar a cicatrizar as feridas — feridas pessoais e sociais — que os bulevares trouxeram à luz. Assim mesmo, a solução radical muito freqüentemente vem a ser dissolução: pôr abaixo os bulevares, apagar as luzes brilhantes, expelir e recolocar as pessoas, eliminar as fontes de beleza e alegria que a cidade moderna trouxe à existência. Devemos esperar, como Baudelaire às vezes esperou, por um futuro em que a alegria e a beleza, como as luzes da cidade, venham a ser partilhadas por todos. Mas nossa esperança tende a ser diluída pela tristeza autoirônica que permeia o ar da cidade de Baudelaire.

O LODAÇAL DE MACADAME

(151)
Embora Benjamin não faça explicitamente essa conexão, leitores familiarizados com Marx notarão a surpreendente similaridade entre a imagem central de Baudelaire, nesse poema, e uma das imagens fundamentais do ManifestoComunista: “A burguesia despiu de seu halo toda atividade humana até aqui honrada e encarada com reverente respeito. Transformou o médico, o advogado, o padre, o poeta, o homem de ciência em seus trabalhadores assalariados”. Para ambos, Marx e Baudelaire, uma das mais cruciais experiências endêmicas da vida moderna, e um dos temas centrais da arte e do pensamento modernos, é a dessacralização.

(152)
A nova força que os bulevares trazem à existência, a força que arranca o halo do herói, conduzindo-o a um novo estado mental, é o tráfego moderno.

(153)
É esse, pois, o palco da cena moderna primordial de Baudelaire: “eu cruzava o bulevar, com muita pressa, chapinhando na lama, em meio ao caos, com a morte galopando na minha direção, de todos os lados”. O homem moderno arquetípico, como o vemos aqui, é o pedestre lançado no turbilhão do tráfego da cidade moderna, um homem sozinho, lutando contra um aglomerado de massa e energia pesadas, velozes e mortíferas. O borbulhante tráfego da ma e do bulevar não conhece fronteiras espaciais ou temporais, espalha-se na direção de qualquer espaço urbano, impõe seu ritmo ao tempo de todas as pessoas, transforma todo o ambiente moderno em “caos”.

(155)
Talvez seja a primeira palavra dessa língua que os franceses do século XX satiricamente chamarão de Franglais:pavimenta o caminho que leva a le parking, le shopping, le weekend, le drugstore, lemobile-home, e muito mais. Essa linguagem é assim vital e atraente porque é a linguagem internacional da modernização. Seus neologismos são poderosos veículos de novas formas de vida e movimento. Tais palavras podem parecer dissonantes e excêntricas, contudo é tão fútil resistir a elas quanto resistir à própria iminência da modernização. É verdade que muitas nações e classes dominantes se sentem — e com razão — ameaçadas pela invasão de novas palavras, e objetos, de outras plagas. (Existe uma esplêndida e paranóica palavra soviética que expressa esse medo: infiltrazya.)

Porém, é preciso observar que aquilo que as nações em geral têm feito, dos tempos de Baudelaire até hoje, é, após uma breve onda, ou demonstração, de resistência, não apenas aceitar o novo objeto, mas criar uma palavra própria para designá-lo, na esperança de eclipsar a memória embaraçosa do subdesenvolvimento.

(156)
Mas essa mesma formulação sugere um caminho que talvez conduza para além da ironia baudelaireana e para fora do próprio caos. O que aconteceria se as multidões de homens e mulheres, aterrorizados pelo tráfego moderno, aprendessem a enfrentá-lo unidas?

O SÉCULO XX: O HALO E A RODOVIA

(158)
Em nenhuma parte esse desenvolvimento é mais claro do que no âmbito do espaço urbano. Se tivermos em mente os mais recentes complexos espaciais urbanos que pudermos imaginar — todos aqueles que foram implementados, digamos, desde o fim da Segunda Grande Guerra, incluindo os novos bairros urbanos e as novas cidades —, será difícil admitir que os encontros primordiais de Baudelaire possam ocorrer aí. Isso não acontece por acaso: de fato, ao longo de quase todo o século, espaços urbanos têm sido sistematicamente planejados e organizados para assegurar-nos de que confrontos e
colisões serão evitados.

(160)
A perspectiva do novo homem no carro gerará os paradigmas do planejamento e design urbanos do século XX. O novo homem, diz Le Corbusier, precisa de “outro tipo de rua”, que será “uma máquina para o tráfego”, ou, para variar a metáfora básica, “uma fábrica para produzir tráfego”. Uma rua verdadeiramente moderna precisa ser “bem equipada como uma fábrica”. Nessa rua, como na fábrica moderna, o modelo mais bem equipado é o mais altamente automatizado: nada de pessoas, exceto as que operam as máquinas; nada de pedestres desprotegidos e desmotorizados para retardar o fluxo. “Cafés e pontos de recreação deixarão de ser os fungos que sugam a pavimentação de Paris”. Na cidade do futuro, o macadame pertencerá somente ao tráfego.

(161)
Tese, tese defendida pela população urbana, a partir de 1789, ao longo de todo o século XIX e nos grandes levantes revolucionários do final da Primeira Guerra: as ruas pertencem ao povo. Antítese, e eis a grande contribuição de Le Corbusier: nada de ruas, nada de Povo. Nas ruas da cidade pós-haussmanniana, as contradições sociais e psíquicas fundamentais da vida moderna continuam atuantes, em permanente ameaça de erupção. Contudo, se essas ruas puderem simplesmente ser riscadas do mapa — Le Corbusier o disse, bastante claro, em 1929: “Precisamos matar a rua!’’—, talvez essas contradições nunca venham a nos molestar. Assim, a arquitetura e o planejamento modernistas criaram uma versão modernizada da pastoral: um mundo espacialmente e socialmente segmentado — pessoas aqui, tráfego ali; trabalho aqui, moradias acolá; ricos aqui, pobres lá adiante; no meio, barreiras de grama e concreto, para que os halos possam começar a crescer outra vez sobre as cabeças das pessoas.

(162)
O pensamento sério sobre a vida moderna polarizou-se em duas antíteses estéreis, que podem ser chamadas, como sugeri antes, “modernolatria” e “desespero cultural”. Para os modernólatras, de Marinetti, Maiakovski e Le Corbusier a Buckminster Fuller, o último Marshall McLuhan e Herman Kahn, todas as dissonâncias sociais e pessoais da vida moderna podem ser resolvidas por meios tecnológicos e administrativos; os meios estão todos à mão, e tudo o que é necessário são líderes dispostos a usá-los. Para os visionários do desespero cultural, de T. E. Hulme, Ezra Pound, Eliot e Ortega, a Ellul, Foucault, Arendt e Marcuse, toda a vida moderna parece oca, estéril, rasa, “unidimensional”, vazia de possibilidades humanas: tudo o que se assemelhe a liberdade ou beleza é na verdade um engodo, destinado a produzir escravização e horror ainda mais profundos.

(164)
Tudo isso sugere que o modernismo contém suas próprias contradições e tensões dialéticas interiores; que determinadas formas de pensamento e visão modernistas podem solidificar-se em ortodoxias dogmáticas e tornar-se arcaicas; que outras formas de modernismo podem ficar submersas por gerações, sem chegar a ser suplantadas; e que as mais fundas feridas sociais e psíquicas da modernidade podem ser indefinidamente tampadas, sem chegar a cicatrizar de fato.

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